Agora estás
parada no meio da linha branca e preta da rua com casas de habitação,
negócios, restaurantes, tendas de comércio chinês e o tráfico normal das
drogas. Estás parada, tens os pés parados e fixos, mas os olhos mexem, há neles
uma interrogação. Ela não está num sonho, algumas horas antes a sessão de psicanálise,
tinha a impressão que aquela viagem não prosseguiria, ler um jornal supondo que
todas as páginas tem a sua cara e a sua vida, podia ser algo como uma sessão de
psicanálise. Parada no meio dessa linha de pedra branca e preta, ela a rapariga
adolescente que usa um brinco de cereja tem roupa de duas semanas colada ao
corpo. Apetecia-lhe que chovesse e também lhe apetecia ficar nua, tomar banho,
mas antes avisar as pessoas daquela rua que fechassem os olhos e que uma uma
vez na vida os policias mexessem o rabo e corressem atrás dos delinquentes, dos
políticos corruptos e dos padres. Agora o relógio da torre bate as horas aos
soluços, ela vem de uma família rica e aristocrática, com o dinheiro da família
ela pode viajar, pagar as consultas, idolatrar a comida vegan, além das aulas
de Yoga e meditação dadas por um mestre que tem um nome difícil de pronunciar.
Ela gosta de fazer sauna, a sauna é como ter a roupa colada ao corpo e sentir o
suor a escorrer como a água húmida das paredes. Chega a noite e no quarto da
pensão ela despe a roupa, lava a roupa na casa de banho, depois deita-se na
banheira e com os dedos imagina a desenhar nos azulejo cenas porno. Na manhã
seguinte veste a roupa lavada, o seu corpo tem um cheiro novo, entrou ar fresco
no seu corpo. Se lhe fizessem um exorcismo sairia de dentro dela um diabo
perfumado. Os empregados de escritório parecem diabos perfumados. O seu avô
tinha um escritório de contabilidade, no natal o avô oferecia-lhe pequenos
livros de facturas onde ela costumava desenhar ou passar receitas quando
brincava aos médicos.
A rapariga chamasse Matilde, o nome lembra o de uma
raposa, ela gosta de trepar em cima de homens mais velhos, acha os homens mais
velhos um circulo aberto, são interessantes para viajar e aborrecidos para viver,
ela prefere gastar o seu dinheiro com a jovem linhagem de vagabundos, o sexo
funciona como uma maquina fotográfica, basta um clique, as maquinas
fotográficas não tem orgasmos. importa o momento, o momento tem de ser
profundo, ela não quer ficar demasiado comovida, comovida fica com as touradas
e com as carnes penduradas do talho, gosta de filmes Japoneses, de jogos de
computador, quando joga imagina que fica nessa linha branca e preta. Sentada
nas escadas da igreja, desdobra o mapa, á sorte projecta o indicador numa
floresta perdida, a floresta negra lembra-lhe criaturas estranhas, ela pega o
estojo da cosmética , faz todo o tipo de caretas, projecta o espelho na
direcção dos degraus, as sombras dos sapatos das pessoas que descem aquelas
velhas escadas, o mendigo e o cão ficam ai, naquela igreja festeja-se os
casamentos de Santo António, quem quer casar tem de partir a cabeça ao santo,
Quando ela era pequena a pedrada era o desporto nacional, havia um miúdo que
tinha a alcunha de mercúrio cromo. As crianças da aristocracia não brincavam na
rua, não se misturavam com os filhos dos proletários, na casa dela os criados
não se sentavam á mesa com os senhores, Matilde tinha um amigo secreto, o tal
mercúrio cromo, os dois foram iniciados em certas descobertas, iniciaram-se um
ao outro , tocaram-se quando o toque era um sinal proibido, o inferno da
catequese e o céu para as almas santas, eles experimentaram o bom inferno,
descobrir o corpo e depois de destapado o véu tudo era normal, nada de mais,
nada sério, apenas aquela vontade que dá quando não nos deixam ter vontade, na
infância de Matilde havia aqueles códigos de comportamento, os códigos são
cordas que amarram, agora sentia que nada a prendia, com a morte do pai recebeu
dinheiro para estudar numa faculdade estrangeira, durante algum tempo abriu um
laboratório fotográfico, fez alguns nus, organizou no espaço alguns concertos,
aquilo durou pouco, era muita despesa, não queria ficar demasiado apegada, o
vicio do tabaco e do álcool tinham o seu momento de apogeu, estava na moda a
decadência das estrelas, era in alguém oriundo da burguesia fazer o papel
rebelde, o teatro rebelde, apagar a linha branca e preta, chegar na floresta
negra e provar os cogumelos, haviam de saber a uma perigosa insegurança. Agora
estava de novo na estrada, dava de novo uma vista de olhos no mapa, ia a uma
cabine telefónica ligar a uma amiga dos tempos em que organizava concertos no
laboratório, havia uma certa atracção, tinha reprimido essa tendência mas houve
um dia que se atirou, não mediu alturas e subiu ás alturas segundo palavras
suas. Agora iam viajar juntas, iam só como amigas ou mesmo que nem isso
importava ter companhia, dividir a leitura dos livros e a comida, repartir
aquelas aventuras antigas, os momentos perigosos lembrados ao sabor de uma
tablete de chocolate. instaladas no compartimento do velho comboio conversavam
de como seria aquele lugar, sabiam de um certo modo, tinham alguma impressão
mas sentir mesmo. saber mesmo, mas isso na verdade roubaria condimento,
imaginaram o druida cozinheiro e elas designadas a provar as refinadas iguarias
daquela floresta, e se fossem elas a iguaria, o prato principal dos monstros
selvagens?! Depois de muita conversa adormeceram, enroscadas uma na outra como
dois felinos. O sono delas de repente foi perturbado pelos passos militares do
revisor, a Matilde cumprimentou o homem com uma saudação militar, ele era o
general das bilheteiras. O homem era uma pessoa de barriga avantajada e de
grandes bigodes retorcidos, possivelmente este pertencia á aristocracia
ferroviária. Matilde e a amiga voltaram a dormir, ainda restavam muitas horas
de viagem, havia muita paisagem a ser saboreada, muitas exclamações a sair das
narinas como perfume. O comboio parou algumas horas num pequeno apeadeiro,
havia em volta pequenas moradias e na sala de espera do apeadeiro andava uma
cegonha, Matilde perguntou o nome da ave a uma mulher que estava tricotando, a
cegonha também se chamava Matilde, Matilde gostava de ter vivido no tempo em
que os animais falavam, no tempo em que os animais falavam a língua que os
humanos entendiam, Matilde gostaria de compartilhar sobre a viagem á floresta
negra, foi na floresta negra que Deus criou o mundo, Deus também fala Alemão,
também diz palavras iradas na língua dos filósofos. O cavalo de ferro entrou no
túnel, o fumo que saia das caldeiras desenhava formas de nuvens, o revisor
anunciou que em breve chegariam á estação de Baden-Wurttemberg, a partir dali
seguiriam a pé, era aconselhável levarem um guia, era perigoso aventurarem-se
por aqueles caminhos, o guia falava com sotaque, sabia um pouco de francês , um
francês elementar desses que se aprende em qualquer escola secundária. O guia
era um homem alto, um emigrante russo de nariz avermelhado que tinha estudado
engenharia mecânica durante o regime e que fugira da prisão Siberiana de
yakuts, morara em Paris durante dois anos e casara com uma guia turística,
tinha duas filhas e arranjara este trabalho, o álcool era o motivo da sua
instabilidade e o alcool fora a inspiracao do seu amor e da sua poesia, nos
dias em que ficava desocupado tocava a sua guitarra e inventava as suas
cancoes. Matilde quando regressou daquela viagem recordava aquele homem
imaginando que talvez ele soubesse falar a lingua dos bichos, houve um momento
da viagem em que ele se sentou com o seu cão, falava em russo, para Matilde a
lingua russa não tinha muita musicalidade, a musicalidade que faltava nas
palavras podia ser encontrada nas danças regionais de algumas antigas
republicas, Vladimir tinha na carteira alguns postais de homens e mulheres
trajados com os trajes tipicos da sua aldeia.
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